Milton Nascimento visto pelos admiradores: "Extremamente magnético, misterioso, interessante"

Paul Simon diz que Milton Nascimento tem a habilidade de entender, a partir da música, seus próprios sentimentos. Ivan Lins afirma que tudo mudou antes e depois do cantor. Spike Lee garante que a voz dele é um instrumento único. Esperanza Spalding revela que consegue sentir a natureza nas letras. Steve Jordan reflete que o artista é a única pessoa que canta assim. E é da América do Sul, como diz a canção. “Ele é o jazz sul-americano”, dizia Quincy Jones. É o ouro, é Minas Gerais.
Esses são alguns dos depoimentos de peso no documentário “Milton Bituca Nascimento”, da cineasta Flavia Moraes, lançado neste 2025 e parte da onda de homenagens ao cantor desde a turnê “A Última Sessão de Música”, que percorreu a Europa e culminou em um grande show repleto de amigos no palco do Mineirão, em 2022.
A trajetória do artista que nasceu no Rio e mudou-se ainda pequeno para Três Pontas, em Minas Gerais, também foi escolhida como tema da Portela no Carnaval de 2025. A presença de Milton no último carro, apoteótico, subverte um dos versos mais citados do cantor. O artista não precisa mais ir aonde o povo está e é o povo que orbita em torno dele.
Na letra do samba, o aviso sobre a espiritualidade: “Na fé/ Que faz do artista entidade/ E sagradas as amizades”. A concepção dos carnavalescos André Rodrigues e Antônio Gonzaga trabalhava com o sensorial — optaram, por exemplo, por não ter muitas imagens do cantor nas alas porque é a música que toca as pessoas, impactando a memória de quem já se emocionou com sua arte.
Mil tons geniais e a pausaTudo começou muito cedo na casa dos Nascimento. Lilia, sua mãe adotiva, foi quem o apelidou de Bituca pela mania de fazer bico quando contrariado. Ela amava Villa-Lobos. Seu marido Zino, pai adotivo do futuro cantor, ficava enciumado com a adoração ao compositor brasileiro e criticava a mulher, dizendo que era melhor ouvir Chopin. Música sempre esteve presente na casa toda. Aos 16 anos, Milton trabalhou como locutor e programador na rádio da cidade — cujas primeiras antenas foram instaladas pelo próprio Zino. De lá, foi parar nos “bailes da vida” como multi-instrumentista e crooner.
Em 1967, a carreira musical de Milton deu um grande salto. “Travessia”, composição dele e de Fernando Brant, inspirada no clássico de Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção e o projetou para o mundo. O lendário álbum Clube da Esquina foi lançado por Lô Borges e Milton cinco anos depois e até hoje é citado como um dos maiores discos da história da música. Porém, em uma carreira repleta de sons, ele sempre soube optar pela mais bela das ironias musicais: o silêncio.
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“Quantos mistérios, Milton, carrega esse teu silêncio?”, pergunta Fernanda Montenegro na narração do documentário. Gilberto Gil define que, assim, ele alcança a profundidade, “aquela encravada no solo da existência humana como se fosse uma pedra, em caráter silencioso e quieto”. “Até o silêncio é interessante porque as pessoas acabam projetando nisso aquilo que elas querem que ele seja”, reflete Flavia.
Foi essa quietude, aliás, o que a diretora do documentário escutou na primeira exibição do filme na casa do cantor. Quando subiram os créditos, ele disse apenas um palavrão e foi se deitar. “Não sabia o que aquilo queria dizer. Era bom? Depois de algum tempo, disseram que ele me receberia no quarto dele e só então soube”. Milton afirmou para a diretora, no quarto, que se emocionou muito com a costura de histórias. “Ele pegou a minha mão, botou no peito dele, e disse: ‘Você mexeu com tudo aqui dentro’. Eu quase desmaiei e falei: ‘Só quis fazer um filme do seu tamanho’, mas ele afirmou que fiz um filme muito maior que ele”, conta emocionada.
Não é só ela quem tem os olhos marejados. No vídeo, Esperanza Spalding ouve a voz do cantor entre lágrimas — ela, que gravou um disco com ele em 2024 e levou adiante o protesto no Grammy por não terem colocado um lugar para o brasileiro ao seu lado, na primeira fila. O filho de Milton, Augusto Nascimento, afirmou à revista GQ que, apesar do pai já ter ganhado cinco estatuetas do prêmio ao longo dos anos, o Grammy anda realmente em baixa por lá após o ocorrido.
Boas trocas que fazem crescerMais de meio século depois do lançamento do clássico “Clube da Esquina”, essa trajetória foi retratada no musical homônimo, dirigido por Dennis Carvalho, em 2022. Fernanda Brandalise, responsável pelo roteiro, já convivia com o compositor desde a infância, porque seus pais eram amigos de Milton. “Demorei alguns anos até entender que ele era um artista e sacar as percepções múltiplas que as pessoas tinham em relação a ele. Milton sempre foi um referencial importante pra mim. É uma figura introvertida e bondosa, que está sempre escutando e atento a tudo que está acontecendo ao seu redor”, ela diz.
Segundo ela, é impressionante o quanto o artista não tem medo da expansão e da sua grandeza. “Ele não perde tempo com inveja ou com sentimentos imaginários de ameaça. Sabe o seu valor e está seguro de si. Tudo o que se reconhece como extraordinário pode somar, as boas trocas sempre resultam na expansão dos envolvidos”, afirma.
Ela conta que a memória mais marcante de sua infância cercada por Milton eram as excelentes imitações que ele fazia do personagem Sebastião, o caranguejo de “A Pequena Sereia”. “Ele cantava a música tema e tinha uma pelúcia do personagem em cima de seu piano”. Na montagem para o teatro, Fernanda tentou mostrar como a jornada que Milton empreende para realizar seus sonhos é desafiadora e torna imprescindível lidar com suas sombras. É daí que é retratado o desenvolvimento emocional do cantor. “Milton enxerga além. Em seu processo criativo, consegue ver a pessoa que consegue tocar bem um acorde no piano, outra que tem um ritmo bom na bateria, outra que faz letras incríveis... A junção desses elementos pode não fazer sentido a princípio, mas Milton sabe exatamente como esses ingredientes podem resultar em uma obra de arte”, diz.
"Extremamente magnético, misterioso, interessante"Nas gravações do documentário, Milton estava saindo da pandemia e muito fragilizado, porque o isolamento foi pesado para ele. “Ficar sozinho, num quarto, com a máscara, é complicado para um cara que vive de visitas e de interação com os amigos”, conta Flavia. Por esse retrospecto, tinha medo de não ter o artista disponível e motivado para participar do filme.
O resultado foi outro — Milton terminou as filmagens e a turnê bem mais jovem do que quando começou e a diretora atribui isso à frequência de fãs anônimos e famosos entregando energia. Um exemplo é o encontro com Spike Lee, em que o diretor aponta o ídolo brasileiro para dizer “a genius” [um gênio]. “You are” [Você é], retribui educadamente o cantor, aos risos.
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Mas, por muitos dias de gravação, ele não quis conversa. “Foram meses de convívio mais calado até uma noite em Los Angeles em que o entrevistei em seu quarto e ele contou muita coisa, cantou e até leu Guimarães Rosa. Nós íamos seguindo o Milton e entendendo que filme a gente estaria fazendo à medida das coisas que aconteciam na estrada. Os amigos que vinham abraçar, as memórias, as músicas. Era um trabalho budista de estar presente e fazer o melhor possível com o que tínhamos”, ela diz. O que facilitou essa “costura” de Flavia foi perceber que o artista é, de certa forma, predestinado. “É como se esse filme já estivesse pronto, eu só precisava acreditar no caminho e abrir o espaço para que as coisas acontecessem sem ansiedade. Foi um um processo pessoal de aprendizagem impressionante no sentido de ‘let it be’, sabe?”, revela.
De fato, não há nada muito planejado na vida do cantor. Hoje ovacionado por tanta gente, já foi até reprovado em aulas de canto — imagina só? Quincy Jones já disse para Milton que os brasileiros têm um jeito de compor que contraria a academia, colocando notas surpreendentemente descabidas nas composições. “Acho que o Milton tem essa liberdade do criador nato”, completa Flavia. Os parceiros do compositor realmente afirmam que, com ele, não há regras. Cada um pode fazer o que quer, sem se fechar em uma partitura hermética. A experimentação do jazz é bem-vinda, mas de um jeito brasileiro que não tem ainda classificação no vocabulário.
Para um bom músico, isso se traduz em liberdade, como define Quincy Jones. Flavia atesta: ele agiu assim com ela e nunca disse que filme queria, ou pediu para tirar ou colocar uma cena ou convidados. “Ele simplesmente me disse: ‘Toca’. Foi uma das experiências mais bonitas da minha carreira”, conta.
É como diz o samba da Portela: “Quem acredita na vida não deixa de amar”. Ou o baile da vida do próprio Milton: “Cantando me desfaço e não me canso/ De viver, nem de cantar”. Que bom para o mundo.
O filme é uma tentativa de entender Milton, que termina sendo uma tentativa de entender o Brasil. Acho que por isso que a gente se emociona tanto, né?”
Flavia Moraes, diretora do documentário 'Milton Bituca Nascimento'
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